Dois documentos presentes no acervo digital da BBM dedicam-se a relatar dois surtos epidêmicos ocorridos no Brasil. Cerca de um século separa os dois eventos. O primeiro documento é um breve relato sobre a epidemia de sarampo que assolou Belém do Pará entre os anos de 1748 e 1749 e o segundo é uma história da epidemia de febre amarela que atingiu o Rio de Janeiro em 1850. O relato sobre a epidemia de sarampo deixa entrever o total despreparo da população e autoridades para combater a doença. Os variados pedidos de intervenção divina foram o principal meio de enfrentamento da crise. As formas de enfrentamento da epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro em 1850 foram radicalmente diferentes. O livro sobre os eventos revela um enfrentamento mais sistemático do surto, baseado nos recursos médico-científicos disponíveis no momento.
Um folheto de autoria anônima intitulado Notícia verdadeira do terrível contágio relata o auge de uma epidemia de sarampo que se abateu sobre Belém do Pará e arredores em meados do século XVIII. Até 1724, diz o autor do relato, “abundavam os sertões em cacau, o mar em peixes, a terra em frutos, e o céu em benignas influências.” Contudo, a partir de então, a saúde e o clima da região começaram a degenerar, o que fez o Bispo Francisco Bartolomeu do Pilar caminhar descalço pelas vilas de Vigia e Cametá, rogando ao “Árbitro do mundo” que abrandasse “o rigor de sua justificada vingança”.
A situação sanitária melhorou por duas décadas, mas voltou a castigar a região em 1742 e, a partir de outubro de 1748, atingiu um patamar devastador. A causa do surto teria sido canoas cheias de escravos vindas do sertão, isto é, indígenas capturados no interior da floresta. Certo é que a população negra, indígena e mestiça foi quem mais sofreu com a doença: “não houve Tapuia (termo usado na época para designar indígenas, em geral inimigos dos portugueses, que não falavam a língua tupi), ou quem dele tivesse sangue, que não padecesse a força desse contágio.”
A lista de efeitos das mortes é extensa, faltou espaço nos conventos para sepultar os mortos, muitos fugiram para suas roças, os alimentos ficaram mais caros e escassos. A população branca, ainda que poupada pela doença, viu seu patrimônio se arruinar “porque toda a riqueza da terra consiste na multidão dos escravos, e súditos.” Sem os braços de negros e indígenas foram interrompidos os serviços essenciais da cidade. A certa altura, já não havia mais escravos dispostos a carregar os cadáveres e o odor dos mortos tomou conta da cidade.
O autor do relato estimou em 15 mil o número de mortos, descontados os que pereceram nos sertões impenetráveis (a dimensão da catástrofe pode ser avaliada pela comparação com o número de habitantes da cidade em 1819, 24.500, segundo os viajantes alemães Spix e Martius). Nenhum método sanitário foi aplicado para conter a epidemia. O recurso utilizado foi apelar para a misericórdia divina por meio de preces, procissões, missas e novenas. A conclusão do relato revela o efeito terrível da doença entre a população indígena e, indiretamente, põe em dúvida a eficácia do método religioso:
"Acha-se mais diminuída a malignidade, porque já não há Tapuias, em que o mal empregue os seus golpes; e por esta causa várias vezes se sente a carência de carne, e tainhas, por não haver quem conduza semelhante sustento do Marajó; e cresceu a maior lástima esta infelicidade, depois que em Abril se perderam as duas canoas, que ministravam este remédio. Deus nos acuda com a sua imensa misericórdia, e ouça os muitos rogos, e clamores, para que não vá uma perda sendo vaticínio de outra perda assim como um abismo chama outro abismo."
No final de 1849, o Rio de Janeiro e seus subúrbios enfrentaram a primeira epidemia de grandes proporções ocorridas na cidade. Capital e principal cidade do Império, o Rio de Janeiro recebia em seu porto embarcações de várias partes do Brasil e do Mundo. Uma delas, provavelmente vinda da Bahia no final de 1849, abrigava doentes de febre amarela, doença que se alastrou pela cidade no primeiro semestre de 1850.
Em 1851, quando o surto já estava controlado, o médico José Pereira Rego publicou uma história dos acontecimentos do ano anterior, Historia e descripção da febre amarella epidemica: que grassou no Rio de Janeiro em 1850. Tendo participado ativamente nos esforços de controle da epidemia e de cuidado dos doentes, Pereira Rego buscou em sua obra sistematizar as experiências adquiridas na luta contra a febre amarela.
Em muitos aspectos, a evolução da epidemia de febre amarela no primeiro semestre de 1850 guarda semelhanças com a pandemia enfrentada pelo mundo no primeiro semestre de 2020. Identificado o foco da doença, as autoridades sanitárias se apressaram em estabelecer uma quarentena obrigatória para os navios vindos do norte do Brasil e criaram um lazareto na Ilha de Bom Jesus, na Baía de Guanabara. Contudo, o número de doentes continuou a aumentar e o sistema hospitalar já não comportava a progressão dos casos. São preparadas, então, novas estruturas para acolher os enfermos e é formada uma comissão de autoridades governamentais e médicas para enfrentar a crise.
A essa altura, o terror já tinha se espalhado pela população, que foi capitalizado por charlatões que vendiam soluções fáceis de cura, colocando o interesse do lucro na frente do da saúde. A comissão lutou contra eles, estabelecendo medidas oficiais de combate à doença. Também foram estabelecidas medidas de auxílio às populações mais vulneráveis. Como parte da equipe que lutou contra a epidemia, Pereira Rego passa uma imagem de eficiências das medidas governamentais que, contudo, talvez não tenham sido estabelecidas com tanta prontidão e eficácia como ele nos faz crer.
Nas regiões mais centrais do Rio de Janeiro, a doença atingiu seu pico em 15 de março, com mais de 90 mortos em um único dia. Dali em diante, os casos começaram a diminuir até que em junho a epidemia foi considerada superada nas zonas centrais, no mês seguinte nos subúrbios e em setembro nos navios atracados na Baía de Guanabara.
Se há semelhanças entre o relato de Pereira Rego e os eventos da pandemia de 2020, também não são poucas as diferenças. A principal razão das diferenças reside nos conhecimentos e recursos médico-científicos disponíveis nos dois momentos. Em 1850, médicos e cientistas ainda não tinham alcançado o conhecimento da existência de microrganismos, como bactérias e vírus. Tampouco tinham condições de supor que mosquitos podiam ser os transmissores da doença. Portanto, eram enormes as limitações impostas para o conhecimento sobre a propagação da febre amarela, uma doença causada por um vírus que é transmitido aos humanos por algumas espécies de mosquito (no Brasil, o principal é o Aedes aegypti).
As causas levantadas por Pereira Rego e seus pares estavam ligadas a fatores climáticos, como temperatura e umidade, à precariedade das condições sanitárias e de higiene. Esses são elementos importantes para a compreensão de surtos epidêmicos, mas não resolviam a questão central da causalidade, que era atribuída principalmente a miasmas, emanações de matéria orgânica provenientes de charcos e pântanos. Combater a emanação dos miasmas foi uma das razões alegadas para arrasar o Morro do Castelo, no centro da cidade, o que incluiu a destruição de uma das principais bibliotecas que havia no Brasil, a do Colégio dos Jesuítas, e a dispersão do seu acervo. Com origem na antiguidade, a teoria dos miasmas foi largamente apontada como causa de doenças como cólera, peste negra, malária e febre amarela. O termo vírus já era utilizado em 1850 e Pereira Rego se vale dele, embora em sentido muito diverso do que ele adquiriria a partir do fim do século XIX, com o desenvolvimento da microbiologia.
"Por ventura estará demonstrado que no tifo, na escarlatina, no cólera, na coqueluche e outras moléstias reputadas contagiosas é antes um vírus que um miasma que as produz? Conhece-se também já a diferença essencial que há entre um miasma e um vírus? Cremos que não.
Os métodos terapêuticos eram outro ponto de fragilidade no combate à febre amarela e outras doenças epidêmicas como cólera, varíola, malária. Em que pese o esforço de Pereira Rego em defender a eficácia dos tratamentos utilizados por ele e alguns de seus colegas cariocas, é pouco provável que eles tenham surtido grandes efeitos.
As indicações terapêuticas buscavam “estabelecer e ativar a transpiração, promover as evacuações, e recorrer às emissões sanguíneas gerais e locais com a prudência e cautelas que que exigia a natureza do mal.” (...) “Em conformidade pois com os princípios acima expostos, logo que os primeiros incômodos se manifestavam, tratava-se de provocar o suor pelos pedilúvios quentes, pelas infusões de borragem, de flores de sabugueiro, de cascas de limão, pelo acetato de amoníaco, pelo acônito, pelas bebidas nitradas dadas com profusão, e pelos banhos de vapor.”
Os tratamentos e as medidas de combate da epidemia ajudaram ou não na cura dos doentes e no combate do surto? Difícil saber. O certo é que em meados de 1850 a epidemia foi considerada superada no Rio de Janeiro. Com os dados que conseguiu coletar, Pereira Rego calculou em 90.658 o número de doentes ao longo da epidemia, dentre os quais teriam morrido 4.160. Infelizmente, esse era apenas o fim de um capítulo, pois epidemias de febre amarela voltariam a assolar a cidade muitas outras vezes ao longo do século XIX e início do século XX.
O livro de José Pereira Rego está disponível na biblioteca digital da BBM: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4890
Em outra publicação, Esboço historico das epidemias que tem grassado na cidade do Rio de Janeiro, também disponível no acervo digital da BBM, Pereira Rego trata das epidemias que ocorreram no Rio de Janeiro entre 1830 e 1870.
Este texto também está disponível no blog da BBM, acesse: https://blog.bbm.usp.br/2020/epidemias-do-passado-sarampo-belem-1748-e-febre-amarela-rio-de-janeiro-1850/